sábado, 21 de maio de 2011

PRECISA-SE DE UM FÍGADO - SÍLVIA MENDONÇA


É sério! Sou a mais nova integrante da fila por um transplante de fígado no Brasil. Para uns, acabo de assinar minha sentença de morte. Para outros, uma chance a mais, como muitas que tive na vida. Mas a fila é longa, e estou cansada. De qualquer forma, vou esperar sentada, no conforto da minha casa. Não em um banquinho, como geralmente fazem as pessoas para aguentar ficar na fila das consultas do SUS, quando não dormem dias e dias no chão.

As condições do doador precisam ser boas (mas ele precisa estar em morte cerebral, o que não deve ser nada bom para ele), pois o fígado sente a queda de pressão, a falta adequada de oxigenação, a desidratação, etc... etc.. Esta avaliação, conforme explicações da minha médica, é feita através dos exames laboratoriais, com sorologia para doenças transmissíveis (por favor, que ele não venha com hepatite C), condições respiratórias e, em última análise, no momento da retirada do fígado, as condições macroscópicas do órgão tem que ser ótimas quanto à consistência, cor, lesões, aspectos vasculares...

Seria mais fácil comprar no supermercado, mas o fígado de vaca (ou boi) não serve. E, até onde eu sei, não se comercializam órgãos humanos no Brasil (perdoem-me a mentira). Um "companheiro" de infortúnio do grupo onde me trato, um rapaz de posses, comprou dois. Passou por dois transplantes e... morreu, aos 27 anos. Ou seja, nesse negócio não tem garantias, ainda mais no meu caso que, além de adquirir hepatite C de sangue contaminado, em transfusão, o meu (?) genótipo é o 1, o mais agressivo. Estou em tratamento a um ano e as carga viral virou um peso: não abaixa nem com todos os métodos alopáticos e alternativos dos quais fiz uso.

Por ser órgão vital e único, a retirada do fígado para transplante só pode ser realizada após confirmada a morte do doador (ainda bem). A partir da década de 60, a aceitação dos critérios de morte cerebral (com o sistema circulatório preservado), facilitou a preservação do fígado. Década em que nasci, com transtorno bipolar, que alterna drasticamente o meu humor. E, quando isso acontece, qual órgão é afetado? O fígado! Seria essa a tal justiça poética que propaguei a vida inteira?

Não quero cair na armadilha da auto piedade, nem tampouco fazer os amigos sentirem-se mal com o que estou contando. É desespero de causa, mesmo! Se alguém souber de um fígado disponível, me avise. Não desejo me meter em nada ilegal no fim da vida (inútil), mas, no Brasil, sempre encontramos uma brecha, um atalho, um buraco de fechadura. Já avisei ao Congresso Nacional que preciso de um fígado, para que possa voltar a trabalhar. Alguns congressistas, que me consideram persona non grata (me lembrei do Marco Bastos, e suas frases em latim), se os conheço bem, devem ter dito, entre dentes, em off (pois não falam o que pensam de outra forma): "Tomara que morra". Se depender deles, não apenas eu vou morrer, mas muitos pacientes em estado grave na fila dos transplantes por diversos órgãos nesse país de Deus nos acuda.

Mas já peguei a senha: sou a número 205. Não me parece um bom número, mas fazer o que. Do jeito que a fila anda (neste caso, é mais lenta que soro pingando), daqui a três ou quatro anos consigo um fígado. Notícia animadora, para quem a palavra urgência esta carimbada na testa.

Ah, antes que eu me esqueça, vou reproduzir as palavras da médica (dra. Maria Helena Chaui) sobre o doador. Um outro fator importante na seleção de doadores, segundo ela, diz respeito ao tamanho do órgão (estou falando do fígado). De uma maneira geral, já é possível que um doador tenha, no máximo, variação de peso entre 10 a 20% em relação ao receptor. Bons resultados são observados nos transplantes de fígado pequeno em receptor com peso duas vezes maior que o peso do doador (ando de olho no ponteiro da balança).

Este fato se deve ao crescimento do fígado até o tamanho adequado para o receptor, que ocorre em torno de 30 dias (acho que não entendem a palavra urgência). Já a situação inversa, ou seja, transplantar um fígado maior do que o do receptor, além da tolerância de 10 a 20%, é contra-indicada pelas dificuldades no fechamento da parede abdominal (essa doeu). Os cuidados tem como objetivo evitar o transplante de um fígado mal preservado, condições estas que levam ao insucesso.

Depois dessa, digo o que? Coloco a fita métrica no bolso, entro em um regime severo... e espero...

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Em tempo: Poucos sabem como eu adquiri o vírus da hepatite C. Não foi por via sexual (20% de chance), mas através de transfusão de sangue contaminado (80% de chance). Quando meu filho Victor, hoje com 16 anos, tinha dois anos, levei-o comigo ao supermercado próximo de casa, como sempre o fazia. Nesse dia, resolveram assaltar o supermercado, mais quebrado que arroz de terceira. Ladrões mal informados. O local não estava cheio, mas havia gente o suficiente para que o segurança tivesse o bom senso de não trocar tiros com os meliantes (acho a palavra horrorosa, mas me lembrei dos tempos em que cobria a editoria de Polícia). Me coloquei na frente de Victor e a bala perdida "achou" o meu pulmão esquerdo. Passei 5 dias na UTI,com um dreno enfiado entre as costelas e crucificada feito Cristo: soro de um lado; sangue, plasma e plaquetas do outro. Nunca tive medo de morrer, mas... Só lamento, pois eu pretendi entrar para o Guiness Book, batendo o recorde de a mulher mais velha do mundo, possivelmente uma múmia encarquilhada, exposta em museu. Todos tem seu tempo. O meu começou a escoar na ampulheta.
Sinto a vida fugir por entre os dedos.

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