quarta-feira, 19 de novembro de 2008
O Canto Noturno de Nietzsche
(Assim falava Zaratustra é um dos textos mais polêmicos de Nietzsche. Zaratustra, o sem-Deus, o porta-voz da vida, o porta-voz do sofrimento, o porta-voz do nosso círculo, entoa este Canto Noturno, que apesar de não estar em versos, é citado pelo filósofo como exemplo de ditirambo no livro Ecce Homo, de 1888.)
É noite: falam mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes.
E também a minha alma é uma fonte borbulhante.
É noite: somente agora despertam todos os cantos dos que amam.
E também a minha alma é o canto de alguém que ama.
Há qualquer coisa insaciada, insaciável, em mim; e quer erguer a voz.
Um anseio de amor, há em mim, que fala a própria linguagem do amor.
Eu sou luz; ah, fosse eu noite!
Mas esta é a minha solidão: que estou circundado de luz.
Ah, fosse eu escuro e noturno!
Como desejaria sugar os seios da luz!
E até vós desejaria abençoar, pequenos astros cintilantes e vagalumes, lá no alto! - e ser feliz com as vossas dádivas de luz.
Mas eu vivo na minha própria luz, sorvo de volta em mim as chamas que de mim rompem.
Não conheço a felicidade dos que recebem; e muitas vezes sonhei que roubar deve ser ventura ainda maior que receber.
É esta a minha pobreza: que minha mão nunca pára de dar presentes; é esta a minha inveja: que vejo olhos à espera e as noites iluminadas do anseio.
Ó desventura de todos os dadivosos! Ó obscurecimento do meu sol! Ó desejo de desejar! Ó fome insaciável na saciedade!
Eles recebem os meus presentes; mas tocarei ainda a sua alma?
Há um abismo entre dar e receber; e também o menor dos abismos precisa ser transposto.
Nasce uma fome da minha beleza: desejaria magoar aqueles que ilumino; desejaria roubar aqueles que presenteio: assim tenho fome de maldade.
Retirar a mão, quando já a outra mão se lhe estende; hesitar como a cachoeira, que ainda hesita ao precipitar-se: assim tenho fome de maldade.
Tal vingança medita minha plenitude, tal perfídia brota da minha solidão.
Minha ventura em dar extinguiu-se ao dar, minha virtude cansou-se de si mesma pela sua superabundância!
Quem sempre dá, corre o perigo de perder o pudor; quem sempre reparte, cria calos em suas mãos e coração, de tanto repartir.
Meus olhos não choram mais ante o pudor dos pedintes; demasiado endureceu minha mão, par sentir o tremor das mãos satisfeitas.
Para onde foram as lágrimas dos meus olhos e o frouxel do meu coração? Ó solidão de todos os dadivosos! Ó silêncio de todos os que espalham luz!
Muitos sóis gravitam nos espaços vazios: falam, com sua luz, a tudo o que é escuro - como silenciam.
Oh, essa é a hostilidade da luz por tudo o que é luminoso: implacável percorre ela sua órbita.
Injusto, no fundo do seu coração, com tudo o que é luminoso; frio para com os outros sóis - assim segue, cada sol, o seu próprio caminho.
Como uma tempestade, percorrem os sóis, velozmente, suas órbitas: esse é o seu curso.
Seguem, inexoráveis, a sua vontade: é essa a sua frieza.
Ó seres escuros, noturnos, somente vós criais o calor, haurindo-se dos corpos luminosos!
Somente vós bebeis o leite e o bálsamo dos seios de luz!
Ah, há gelo em volta de mim; queima-se minha mão tocando em gelo!
Ah, há uma sede, em mim, que almeja pela vossa sede!
É noite: ai de mim, que tenho de ser luz!
E sede do que é noturno. E solidão!
É noite: como uma nascente, rompe em mim, agora, o meu desejo - e pede-me que fale.
É noite: falam mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes.
E também a minha alma é uma fonte borbulhante.
É noite: somente agora despertam todos os cantos dos que amam.
E também a minha alma é o canto de alguém que ama.
- Assim falava Zaratustra.
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